Andre Luiz Nunes da Silva
Advogado, Mestre em Direitos Humanos e Democracia pela UFPR
A construção cultural em nosso pais foi idealizada no “Mito das Três Raças”. A noção de que a formação do Brasil se baseia na integração harmoniosa dos povos indígenas, negros e brancos, é uma ideia que permeia o imaginário nacional desde o período modernista. Obras como Martin Cererê, de Cassiano Ricardo, celebram essa integração de modo poético, exaltando a união dessas etnias como o cerne da identidade nacional.
Com o tempo, essa perspectiva foi adotada por diversos setores, incluindo a cultura popular. Em 1972, por exemplo, o samba-enredo “Martin Cererê”, da Imperatriz Leopoldinense, de autoria de Zé Catimba, trouxe para o carnaval carioca a narrativa da união, consolidando o imaginário do Brasil como um país "cordial" e igualitário.
"Vem cá, Brasil, deixa eu ler a sua mão menino, que o grande destino reservaram pra você”
“Tudo era dia, o índio deu a terra grande, o negro trouxe a noite na cor , o branco a galhardia e todos traziam amor, tinham encontro marcado pra fazer uma nação e o Brasil cresceu tanto que virou interjeição ... “
Contudo, essa idealização romântica e culturalmente rica não reflete a realidade enfrentada pelas populações negras e indígenas. Em 1972, em plena ditatura militar, com vozes contrárias ao regime sendo silenciadas e a população negra mantida à margem, o regime politico fomentou o racismo institucional e a discriminação racial com forte intolerância às causas e reivindicações por igualdade da população negra, refém das ilusões e benesses do mito da democracia racial.
Passados 52 anos, o racismo e a violência ainda estão presentes. Tivemos avanços importantes, como a tipificação do racismo com crime, o Estatuto de Igualdade Racial e políticas públicas governamentais. Na prática, vivemos uma triste realidade: avançando para o contexto atual, os índices de violência e de exclusão social contra a população negra revelam uma realidade alarmante e desumana. Dados da Rede de Observatório da Segurança (2024) indicam que, nos últimos anos, uma pessoa negra é morta em intervenções policiais a cada quatro horas, com negros representando cerca de 87,8% das mortes registradas, predominantemente jovens de 18 a 24 anos. Esse número revela a gravidade da violência racial no Brasil, onde a maioria das vítimas pertence às favelas e periferias – 73% da população das favelas é composta por negros, segundo o IBGE (2022). A discriminação racial institucional, evidente nas abordagens policiais e na ausência de políticas públicas eficazes para esses grupos, reforça um ciclo de marginalização e exclusão.
Esse cenário de violência e repressão à população negra e periférica contrasta duramente com a visão idealizada da miscigenação. As estatísticas revelam o fracasso de políticas de segurança pública e de proteção social, que não conseguem proteger, incluir ou elevar essa significativa parcela da população. Assim, o "encontro marcado" para fazer uma nação, proposto poeticamente pelo samba-enredo, ainda não foi plenamente concretizado. Ao contrário, a lacuna entre a realidade e a idealização nacionalista é gritante e revela um racismo explícito e contemporâneo. É evidente o contraste existente no plano educacional entre estudantes negros e estudantes brancos que cursam o ensino fundamental e médio. A evasão escolar da população negra aumenta cada vez mais.
Políticas de reparação, como ações afirmativas, inclusão e direito à igualdade material, precisam avançar ainda mais.
Em um esforço para combater o racismo estrutural e criar oportunidades, políticas afirmativas, como as cotas, têm sido implementadas. Em 2024, o Brasil celebra o Dia da Consciência Negra como feriado nacional, uma vitória importante do Movimento Negro e causa negra, comemorando Zumbi dos Palmares e reforçando a memória da resistência negra no país. Apesar desses avanços, ainda há um longo caminho para superar a desigualdade histórica, e o Projeto de Lei (PL) 158 surge como uma nova proposta de ampliação das cotas raciais. O PL busca elevar as cotas raciais para 30% nos setores públicos e privados e incluir indígenas e quilombolas, reforçando a necessidade de inclusão de todos os povos originários e marginalizados no projeto de nação brasileira.
Este projeto de lei simboliza uma tentativa renovada de unir os ideais do "Mito das Três Raças" com a realidade brasileira contemporânea. Ao ampliar as cotas, o Brasil poderia corrigir, ainda que parcialmente, as injustiças históricas e contribuir para a construção de uma sociedade mais equitativa. Segundo dados do IBGE, 55% da população brasileira é negra, e, portanto, qualquer política pública significativa deve incluir essa população, atendendo suas necessidades e respeitando seu direito de cidadania plena.
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